inferno.

"Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: «A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe.»
O vento da noite gira no céu e canta.
[...]
Em noites como esta tive-a eu nos meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso Escrever os Versos mais Tristes Essa Noite - Pablo Neruda

Meu caro,

desde quando pulei da sacada existencial do mundo, sorrio ao passar pelas nuvens, minhas amigas e companheiras. O perfume das gotas de chuva e as cumulonimbus das pétalas. Escrevo esta carta não somente para ti, mas aos que morrem, aos que vivem, aos que riem, aos que amam, aos que perdem. Também ao verme que primeiro consumirá minhas carnes e as apodrecerá - pedindo desculpas à Brás Cubas. Aos anjos estuprados que choram a ira dos sofredores e ninguém mais liga para suas lágrimas. 
     Não posso ignorar os olhares negros sob o julgo acusador da cruz redentora cristã. Sim, é esse o fogo que consumirá todos nós e há séculos nos torna dependentes desse átomo tragicômico de estrela. Somos a grande piada dos seres que nos criaram e agora de nós riem. 
    Mas afinal a carta é sobre nós, e foi em nós que pensei quando caminhei pela areia da praia, pensei em ti. Quando a espuma das ondas tocou meu corpo, pensei no teu toque, seus dedos macios em meu rosto machucado e cansado. O modo como seus lábios nos meus em uma mistura quase alucinógena de sangue, lágrimas e saliva (imersa na dor eu estava), e em como você não temeu enfrentar as sombras passadas e vindouras comigo. Eu segurei sua mão e pude gritar para o meu demônio que ali era o fim. E tudo, querido, são lembranças que nem sei se aconteceram. Sim, o futuro ainda me vem em flashbacks e me assombra, e o passado me é desconhecido. Quando eu for moribunda e unir-me a ti leve-me pelo mundo. Quando estiver em meu último suspiro, ainda jovem, me convida para assistir o Jogo de Xadrez do universo, me entregue uma arma para combater meus inimigos, só assim poderei estourar meus próprios miolos, espalhando os meus neurônios – então cansados – pelas paredes brancas demais. 
    Desculpa por mais uma vez me deixar levar pelos devaneios. Minha lucidez talvez tenha sido enterrada junto à ti. E o meu ódio é como sangue, precisa ficar dentro de mim para que eu sobreviva, e sempre é preocupante e aliviante quando ele começa a escorrer. Me chame mais uma vez de capitã e siga minhas ordens no Apocalipse. Lutarei na linha de frente, ao teu lado, e seguiremos para a batalha no novo mundo que há de vir, sob o estandarte do Caos. A sombra há de reinar, o Abismo há de nos possuir e a Poesia há de ser o espírito que repousa sobre as águas e é as próprias águas. Levantarei os olhos e me depararei com a feira medieval, lembrando-me da nossa dança naquele festival trovadoresco e irreal. Se fecho os olhos, os dias no Egito à margem do Nilo me vem, e se suspiro, posso sentir o calor de teu corpo, o único que sinto na Era do Gelo, desarmada. E armas não pareciam ser necessárias desde o advento da vida. Convenhamos, a lâmina é uma arma simples: tão simples quanto a verdade e tão cortante quanto. 
    E as palavras? As palavras sempre me soam intensas, tal como uma orgia abafada e sussurrada de línguas dopadas. Feitas para comunicação, sim, mas o paradoxo é eu não saber comunicar à mim mesma que estou tentando esquecer-te.
      Sabe, sempre ouvi o Frio sussurrando ao meu ouvido. Ele nunca conta mentiras, sempre me é sincero quando arrepia meu corpo. Sua verdade me machuca e congela quando me recorda a covardia de percorrer várias bocas tentando esquecer a tua. Tocar vários corpos tentando esquecer o teu. Trilhar vários caminhos que parecem vãos se comparados com os que trilhamos juntos. Escrever várias poesias que nunca superam ou igualam-se às que dediquei a ti. Meu sentimento, bem sei, sempre foi clichê, apesar de eu nunca o demonstrar. No fundo (boba crente atéia, eu sei), ainda espero uma chance do Universo me deixar provar o quanto te amo, te amei... Lá sei...
    O que sei é que vou ficar aqui, encarando o céu noturno do passado. Dentre milhares de sorrisos, em milhares de carinhos e em milhares de amores, eu talvez sempre prefira os seus. E justamente por isso oro sem cessar ao Tempo para que ele te leve embora de minha memória. Mas aos poucos: quero beber dessas lembranças um pouco mais.

com amor,
M.

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