Sinfonia de Queda - Primeiro Ato.
Ato 1: Nicotina.
Se tudo o que você tem hoje, pessoas, bens materiais, conquistas, se tudo isso se dissolvesse e se perdesse ao longo da sua vida, se dissipando como neblina ao tocar do sol, o que te faria continuar em frente? O que te levaria à levantar da cama toda manhã, à continuar lutando? O que pausaria o inevitável cronômetro quase zerado na sua cabeça?
Embora a noite estivesse quente, a fumaça também quente que Nina Fernández soltava era reconfortante. O cigarro havia sido cortesia involuntária de um dos clientes do restaurante de beira de estrada. Ela quase jogara fora sem conferir o conteúdo do que pensou ser apenas uma caixa vazia, abandonada sobre a mesa, mas num impulso abriu a embalagem revelando dois cigarros ali esquecidos. Queria acreditar que o cliente deixara ali como uma forma de gorjeta, embora soubesse que tudo não passava de esquecimento. Afinal, ultimanente as poucas coisas boas que vinham acontecendo eram apenas casualidade mesmo. Quem poderia falar de sorte ou bênção afinal, quando o dinheiro era tão escasso que lhe permitia apenas o suficiente para sobreviver aos trancos e barrancos e se dar ao luxo de comprar uma caixa de cigarros baratos por mês?! Já perto do fim, levou a fonte de nicotina mais uma vez aos lábios finos, tragando-o.
"De qualquer forma", pensou a mulher, enquanto deixava o pré cancer circular em seu sistema respiratório antes de permiti-lo sair, "é possível extrair
alguma metáfora disso. No fim, acho que sou como esses cigarros. A última de uma suposta caixa vazia que também é a minha vida. Se consumindo pouco à pouco. Agonizando e morrendo nas chamas que por mim mesma mantenho acesas", concluiu com um gesto facial que poderia ser interpretado de longe como um sorrisinho fraco.
O sono pesava em seus olhos marcados pelas olheiras, e após soltar a fumaça para o ar, então ela se obrigou à apagar encostar a ponta ainda quente do filtro na própria perna, cerrando os punhos e sobressaltando-se, acordada pelo ardor das brasas que atravessou mesmo o grosseiro tecido jeans da calça surrada. Atirou o filtro no chão, pisando nele e o enterrando um pouco entre as pedrinhas do chão dos fundos do restaurante.
Era mais um daqueles dias para Nina. Não, não um dia no qual tudo tá errado. Afinal, "tudo que poderia ter dado errado já deu", como ela mesma pensava sempre que surpreendentemente sentia receio de algo não dar certo. Simplesmente mais um dia que ia chegando ao fim sem nada demais, com ela afogada na mesma sensação asfixiante de aperto no peito, de estagnação quase física, de desistir de tentar se tirar do mísero lugar no qual ela se encontra. E ainda que ela usasse de todas as suas forças, de nada adiantaria. Ela sabia. Ela já havia tentado.
Quando gritaram seu sobrenome de dentro do restaurante, ela quase ficou surpresa por arranjar energias mentais para revirar os olhos e xingar baixinho, guardando o outro cigarro esquecido de volta no bolso do avental de onde havia acabado de o tirar na intenção de acender.
"Que se foda. Pelo menos assim tenho desculpa para guardar para depois", resmungou ela, apenas em pensamentos, enquanto girava nos calcanhares e abria a pesada e gelada porta de metal dos fundos do estabelecimento.
~
Algumas horas mais tarde, enquanto saía pela porta por onde entrara mais cedo após ser chamada para limpar as mesas, lavar louça e preparar o estabelecimentos para o horário de atendimento da manhã, Nina olhou o céu, resmungando. Não demoraria muito para o céu surgir no horizonte. Ela andou até o amplo espaço próximo que servia e guisa de estacionamento para caminhões, e consequentemente de hospedagem para os motoristas. Andando por entre os veículos grandes, pisando silenciosamente no chão de terra batida, com receio de acordar algum dos homens rabugentos antes de seu horário, ela seguiu até onde haviam alguns caminhões velhos e enferrujados que haviam morrido por ali e que ninguém nunca voltara para buscar.
"Cemitério de ferrugem... tão identificável", pensou ela, ao se aproximar de uma das carcaças enferrujadas para dela soltar a corrente da bicicleta. Vestiu a jaqueta velha que estava pendurada em seu ombro desde quando ela saíra do restaurante: não que ela se incomodasse com o frio habitual desse horário, mas este se intensificava quando ela pedalava pela beira da estrada ladeada por mato sem direito à calçada ou faixa. Na mochila às costas, levava marmitas com a comida que não fora vendida. Era um costume comum entre os funcionários, mas para ela era quase questão de sobrevivência, já que para ela essa seria quase toda a alimentação do dia.
"Sempre volto para casa com muita pressa, ainda que isso não faça sentido. não é como se naquele muquifo me sentisse melhor do que aqui... é apenas menos pior. Estar aqui fora representa ter que conviver, interagir, ter que enfrentar a dura realidade: de que a vida de todos segue, progride. Ainda que hajam passos para trás, há mais passos para a frente. Já no meu caso, só queria saber em que momento da caminhada dei meia volta e passei à regredir totalmente. Acho que é por isso que a vida não é perfeita. Porque ela sabe que somos pecadores. e ela mesma se certifica de nos punir. Só não posso evitar me questionar quando terminam as consequências dos erros e quando começam as punições. É uma linha bem tênue. "
Há muito Nina desistira de calar a voz reflexiva que tinha na sua cabeça. Era maçante ouvir ela se questionando mais uma vez e mais uma vez e mais uma vez sobre questões que a Fernández já havia desistido de ponderar muito tempo atrás. e, enquanto pedalava lentamente por entre o labirinto de caminhões para chegar até à estrada, ela simplesmente se deixou pensar, ou melhor, deixou a voz pensar por ela, sem sequer desviar a sua atenção das pedaladas ou do caminho que percorria. Afinal, há tempos havia esse alguém em sua mente, preso no mesmo ciclo vicioso de pensamentos redundantes que Nina esgotara-se de tanto questionar-se. Mas se não tinha mais energia pra questionar, que dirá para impedir a voz de sussurrar-lhe aquelas besteiras repetitivas.
"Quando era mais jovem, vivia como se houvesse esperanças. Quando os problemas vieram, tive esperança, e a esperança se misturou nesse composto psicodélico com a dor. Se fosse dar um conselho para alguém nesse sentido, seria: cuidado com o que espera. Esperança em doses erradas é tão alucinógena e viciante quanto o mais ilícito dos entorpecentes. Para mim, ser otimista demais, da forma errada, do jeito errado, tudo isso cresceu com raízes grossas e se enraizou nos meus sentimentos; mas, quando a realidade bateu, dura como se jogar na água (à alguns quilômetros de altura), as raízes foram arrancadas de mim, sem aviso prévio, sem contagem de um até três, sem a porra de um analgésico. E elas levaram consigo tudo que elas haviam envolvidos em suas ramificações espinhentas, dolorosas e ainda assim deliciosas de se sentir."
Pedalar pela rodovia – ainda que nesse horário, quando na maioria esmagadora do tempo nem passam veículos – sempre foi perigoso, ainda mais para ela. Nos primeiros meses foi difícil. Então completou um ano, e ela se acostumou com os medos. Não parou de temer, apenas se acostumou com a sensação de seu coração apertar e seu raciocínio acelerar à milhão quando algum carro surgia ao longe, quando a silhueta de alguém caminhando (sempre uma silhueta masculina) era revelada. Sempre podia ser alguém lhe trazendo a morte, ou ainda pior. Um simples motorista sonolento poderia ignorar ela ali, obrigada, pela falta de calçada, à guiar a bicicleta quase no meio de uma das faixas e então... então o nada. O frio era cortante em seu rosto, mas também à isso ela havia acostumado-se.
"Morrer... já se perguntou porque sentia tanto medo quando começou à fazer esse trajeto?"
"Ainda sinto" - era raro que ela, descesse ao nível de responder-se mentalmente, já que a própria mulher desprezava a toxina falante que se instalara ali e roubara sua voz mental e suas inseguranças só para ter o prazer de jogar-lhe tudo de volta, bem na sua cara e sem qualquer eufemismo.
"Não, não sente tanto quanto antes. Você sabe, ambas sabemos. Tento, tentas esconder de mim, de nós, essa pequena e primitiva parte que chamo covarde que espera que algum condutor bêbado não segure o volante direito, que não note a ciclista idiota, que siga direto sem parar pra ajudar. Mas covardia é um conceito um tanto engraçado. Conceito que você julga que faltou quando você tentou usar o caminho mais rápido e nem por isso mais fácil de só... deixar de existir."
Os pés da ciclista pararam de se mover e ela ergueu a cabeça, deixando o seu meio de transporte barulhento se deslocar alguns metros sem pedalar, seu olhar fixado no céu (nortuno? diurno? nunca dá pra saber à essa hora) tingido em partes pela cor amarelo desbotada da luz do sol surgindo petulante pela curvatura do planeta. As estrelas ainda eram visíveis em parte, e foi em uma qualquer que a ciclista manteve sua atenção antes de voltar à abaixar a cabeça e mover as pernas para impulsionar de novo os pedais.
"Já refletiu acerca meu porquê de existir, Nina? Já questionou o motivo dessa voz que você considera idiota e cansativa ter surgido? Em qual momento você se tornou a idiota que bota nicotinas literais e metafóricas para dentro de si, mesmo sabendo que elas a destruiam por dentro e pior, principalmente por ela as destruirem por dentro? Ora, me chamas de repetitiva? Já olhou à sua volta? Já deu uma boa olhada com esses seus olhos mortos no mesmo circuito fechado que sua vida se tornou? Na rotina opressora e pesadamente desconfortável que você adotou para si? Sabe, reconsidere quem é o repetitivo aqui. Você simplesmente não fez nada para se livrar do que considera prisões: a tal voz repetitiva, seu vício, sua vida, sua realidade digna de pena."
— Cala a porra da boca, caralho! — gritou ela. Para o inferno. Ninguém estava por perto. E se estivesse, para o inferno também. Ela poderia lagrimar (tristeza? raiva?), mas já havia chorado demais. Ela poderia gritar de novo, mas sua garganta estava seca, de umidade e de palavras. E de que adiantaria chorar, gritar, emitir sons de protesto. Nada ia mudar. Nem corrigir seus erros do passado. Nem trazer aqueles que ela perdeu de volta. Nem colocá-la magicamente em melhores condições. Chorar não serve de nada quando o vento contrário leva embora suas lágrimas assim que elas brotam. E reclamar não adianta pra merda nenhuma quando a vida escarnece de suas falas assim que elas são pronunciadas.
"Você não está numa posição de recusar qualquer coisa que o universo te oferece, Nina. Seja boa ou ruim." – retrucou num sussurro a Voz, calando-se por fim (não que continuaria assim por muito tempo, obviamente).
Quando Nina levantou os olhos até então perdidos vagando no asfalto deslizante abaixo dela, notou que estava se aproximando mais da cidade, ou melhor, no conglomerado de vidas mutuamente atropelantes e atropeladas que se denominava bairro de subúrbio que ela tinha à guisa de lar (lar, Nina? isso nem é uma casa, que dirá um lar). A alça da mochila velha e levemente suja parecia incomodar, embora houvessem duas camadas de tecido entre a alça e a pele da mulher.
Talvez hoje houvesse um bom motivo para chegar em casa, afinal, lembrou ela do cigarro extra que ainda não havia consumido. O parco dinheiro que ela ganhava lhe garantia a folga financeira para uma cartela por mês, que ela racionava ao extremo. O que viesse de nicotina a mais era lucro. Passava das seis quando Fernández virou na esquina do "seu" quarteirão. A padaria já estava aberta. A luz cálida dos poucos postes que ainda funcionavam na rua deixavam a com um filtro amarelado um tanto arrepiante. Mas, para quem fazia esse trajeto inúmeras vezes, era apenas isso... um trajeto. Sem qualquer poesia ou entrelinha.
Fim do ato 1.
Comentários
Postar um comentário