espelho mágico.
Nos fundos da antiga casa do meu já falecido avô, havia um quintal e, bem lá numa velha parede de tijolos cheia de limo, havia um espelho. Suas bordas estavam já desgastadas pelo tempo, e boa parte do vidro havia sido impregnada por um camada branca e fosca que bloqueava os reflexos. Mas se você se concentrasse e olhasse bem no centro do espelho, se olhasse através da ação do tempo, do desgaste e da poeira, você conseguiria ver o seu reflexo. Mas o que eu nunca contei a ninguém é que aquele espelho não era um espelho velho qualquer, na verdade ele era um espelho mágico, e dependendo de como e em que momento do dia você olhasse, e de quem você era quando olhasse, aquele espelho se tornava uma janela capaz de te mostrar outros mundos.
Durante o dia, quando não havia nenhuma amiga nuvem no céu e o sol escarlate machucava carne, ossos e sonhos, havia do outro lado dessa janela um mundo perturbador, com uma figura ainda mais perturbadora a me encarar. Dentre tudo que eu via, dentre todos que eu enxergava, essa era a mais parecida comigo.
"mas não é você,
não é você,
não pode ser",
cantaram as targarugas.
Haviam olheiras profundas no que deveriam ser os olhos, mas no lugar dos quais haviam apenas crucifixos, como nos desenhos animados que eu assistia mostravam quando o personagem desmaiava ou se machucava. Suas mãos estavam paradas, e mais do que simplemente paradas, vi que ele não conseguia se mexer de forma alguma, nem mesmo se mover do lugar a menos que as correntes submarinas o levassem para onde quer que elas quisessem. Mas isso não era tão bom quanto parecia, pois eles os carregavam para o que era bom e o que era ruim, e por isso os meus sorrisos
"não é você,
não é você,
não pode ser",
reforçaram as tartarugas.
Não... não os meus sorrisos, os sorrisos dele! E por isso os sorrisos dele pareciam tão machucados, tão tristes, embora tão lindos, embora eu tivesse vontade de unir meus lábios aos lábios cortados dele e ignorar o gosto metálico e prateado do sangue, e sussurrar contra as nossas bocas que tudo ficaria bem, que nada do que passara ou do que vira havia sido culpa sua, que o que quer que as torrentes termais quentes lhe mostravam, que nada disso havia sido escolha sua. Se você pudesse, não teria escolhido esse caminho, não é mesmo?! Você não teria se destruído tanto assim, eu sei. E mesmo se tivesse, estaria tudo bem, você não seria culpado, ao menos eu não te culparia. Talvez eles te culpassem, mas eu não, não sou como as arraias, não quero te cobrir com minhas nadadeiras para te proteger até te sufocar, nem te acariciar e consolar com um ferrão venenoso. Não, eu queria te abraçar e te dizer que você não tem culpa das chances que passaram, dos tempos e prazos que expiraram, das oportunidades que já se foram. E que mesmo se você tivesse culpa, ser culpado de um crime em um passado tão diatante e imediato não faz mais sentido.
"Ei pequenino
que está sob o sol a pino,
saiba disso para não sofrer a esmo:
se mutilar, se sabotar e até se matar,
nada disso é proíbido
ninguém comete crimes contra si mesmo",
cantaram as carpas, uníssonas.
Sim, você não errou e se tivesse errado já teria passado. Se eu pudesse estender a mão através do espelho,
"Não é um espelho,
para ver não precisa de lâmpada ou vela,
você está vendo por meio de uma janela", corrigiram as tartarugas.
se minha mão pudesse cruzar as venezianas, eu acariciaria nosso… o seu rosto. Passaria suavemente meus dedos pelas cicatrizes antigas, recentes e futuras, percorreria os traços de seu rosto destruído, de sua expressão estática e congelada, traços preguiçosamente entrecortados pelas costuras em alto relevo no tecido de seda e pano da sua pele, e se eu me concentrar o suficiente, posso sentir também os crucifixos tricotados com fé no lugar daqueles que já foram um dia os seus belos olhos escuros e sonhadores.
"Quando o monstro que chamam de semeador chegou
ele fez isso porque prometeu que ajudaria
mas você logo soube e sabia
isso nunca ajudou",
lamentaram as carpas.
Ah, se eu pudesse. Mas não posso, posso apenas olhar, e nem por tanto tempo: logo as ondas e as marés das nuvens vem cobrir o sol, vem tampar a assustadora visão do infinito céu de ainda mais infinitas possibilidades. Olha, pode ouvir? Acho que não, essa janela mágica só deixa a visão passar, embora as vezes quando eu olhava por muito tempo e quando estava especialmente sensível, eu podia ouvir o seu choro,
"Ei, nosso lindo e esperto garotinho,
não minta, não minta para nós
o ser na janela nunca chorou sozinho",
sussurraram as tartarugas.
e agora eu também posso ouvir a maré subindo e o maligno e alucinante sol partindo, levando embora suas miragens. E tudo que resta antes de fechar a janela é dar um breve aceno de tchau, com um - espero - consolador sorriso e um olhar que espero que diga que sinto muito, que nada é ou foi culpa sua, mas que também diga que não quero acabar como você.
"Haja o que houver, aconteça o que acontecer,
guie suas escolhas
para não se tornar como aquele ser",
aconselharam as carpas, em seu coral ridículo e sincero.
Mas o espelho mágico não mostrava apenas isso, eu sabia pouco sobre ele e não parava para o estudar e buscar compreendê-lo, eu estava ocupado demais brincando, e também desenhando e escrevendo sobre peixes fora d'água. Ainda hoje eu me pergunto o que ele poderia, que outras coisas poderia ter me mostrado através de janelas reflexivas e suas realidades dolorosamente reais. Mas algo eu sabia, ao menos mais de uma janela eu podia ver. Quando ia embora o dia, a noite pacífica e e silenciosamente caía, o ensolarado e incriminante pesadelo se esvaía e dava lugar ao Sonho.
"Mr. Sandman,
breag me a dream…",
cantarolou uma tilápia bem assim, enquanto passava por ali.
Nesse momento você devia se acalmar, sorrir sinceramente e esperar que tudo estivesse no máximo de silêncio possível, e, se as nuvens estivessem no lugar certo, a superfície velha e sólida do espelho tremeluzia e se tornava uma outra janela, muito mais poderosa, pacífica e encantadora. Por ela, mais do que a visão podia passar, e a primeira coisa que você poderia sentir, se aquela fosse uma noite com apenas uma brisa suave, era a fragrância que emanava da janela, o vívido e libertador aroma das folhas de papel envelhecidas e bem conservadas, dos livros recém abertos, do couro das capas. Ao fundo, você via de onde emanava, das intermináveis e incontáveis prateleiras abarrotadas organizadamente de livros. Nos espaços entre as estantes, poltronas confortávei, com gatos bibliotecários esparramados por ali. E, no centro da visão, não tão bem centralizado na moldura da janela, estava outro ser. Talvez surpreendentemente, talvez previsivelmente, aquele ser se parecia muito com o ser diurno e por consequência comigo.
"Não, jovem, não se iluda
tampouco deixe de crer
esse ainda, repetimos, ainda não é você",
entoaram as tartarugas em coro.
Ao mesmo tempo semelhante, não podia ser ser tão dolorosa e ao mesmo tempo diametralmente diferente e oposto a mim. Suas feições eram suaves e calmas, e seus traços eram tranquilos. Ainda assim tive certo medo. Parecia em paz e tão forte. E seus olhos eram mais do que sonhadores, no fundo de seus belos olhos escuros também havia realização, alcance. Ao todo, se eu fosse lhe resumir, eu diria que aquele ser ela repulsivamente e atrativamente lindo. Me perguntava se eu também era uma janela, se os seres do lado de lá poderiam me ver, e o que pensariam. E não soube exatamente como me senti quando me dei conta de que se eu fosse um janela, eu seria para o ser noturno o que o ser diurno era para mim. E o que exatamente ele era e o que eu sentia com relação ao ser diurno, isso eu buscava entender e poder dizer a mim mesmo. Ele talvez fosse meu medo, minha fonte de raiva para seguir e perambular mesmo em meio à luz cegante do meio dia, do sol a pino.
"É um fato curioso, você pode estranhar
a umbra sempre te fez ver melhor,
e a luz pode te fazer chorar e cegar", disseram as carpas.
Mas nada disso podia me preparar para quando você estendeu sua mão pela moldura e tocou minha face. Suas mãos eram macias e confortáveis e frias, mas seu gesto e seu carinho eram quentes, e seu suéter com estampa de margaridas cheirava com a mesma fragancia de lar, de livros abertos, mas também de café recém coado. Seus polegares fizeram carinho em minhas bochechas e secaram minhas lágrimas, e então seus braços gentilmente me puxaram para você. Meus olhos marejados estavam fechados para evitar novos fluxos de gotas de chuva salgadas vindas das nuvens de tempestade que moravam atrás dos meus olhos. Eu esperei encontrar com a moldura da janela, mas tudo que encontrei – e me encontrei – foram teus
"Nos meus futuramente você dirá,
dê tempo ao tempo,
é clichê mas funcionará",
confortaram me as tartarugas.
teus braços. E, por um breve e duradouro momento, eu me senti em paz. E não me importei de parecer com o ser diurno,
"Por enquanto",
reforçaram as tartarugas.
nem de não me parecer o suficiente com o ser noturno.
"Ainda",
observaram as carpas.
Tudo acabou quando ele se afastou levemente do aperto necessitado dos meus braços ao seu redor, para então eu sentir o suave e esperançoso beijo em minha bochecha, seguido de um sussurro que me amedrontou, mas sobretudo me pacificou.
Acordei encarando o teto permeado por adesivos fluorescentes de estrelas e nuvens, com as palavras ainda explodindo e ecoando em minha mente: "não foi culpa sua!".
"A verdade é dolorosa, sabemos
mas ainda assim você deve ver
entre os dois fantasmas nas janelas do espelho
você nunca pôde (nem quis) escolher
e agora mesmo ao invés de o fazer
você narrou essa fábula em meio
por dentre as velhas páginas do seu caderno de ideias
que nunca jamais alguém irá ver
muito menos você",
cantarolaram as carpas, ao fundo em meu subconsciente.
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